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O mundo do vinho e a grande arte de enganar trouxa

Ailin Aleixo

02/08/2018 15h34

Entender de vinho passa, primeiro, por entender como ele é produzido.

Uma das coisas mais caricatas do mundinho gastronômico é o esnobismo em torno do vinho. Cidadãos e cidadãs empertigados, girando suas taças de cristal e analisando retrogosto, encontrando notas de capim Toscano molhado pelo orvalho invernal, comparando safras, citando listas de pontuação com seus narizes em pé. Tenho que conter meu riso todas as vezes que topo com uma cena dessas. A principal razão é que eles tratam como joia gastronômica artesanal o que, muitas vezes, não passa de um belo coquetel químico.

"A indústria enológica faz questão de fomentar a imagem de que todos os vinhos são artesanais, familiares e respeitam o terroir. Acreditar nisso é como acreditar em papai noel e em coelho da Páscoa", diz a sommeliére Lis Cereja, especialista em vinhos naturais e criadora da Feira Naturebas, a ser realizada neste sábado, em São Paulo.

Peraí: vinho natural?! Mas há vinho artificial, por acaso?
Opa… Há muito vinho 'construído' quimicamente que está mais pra refrigerante do que para suco de uva fermentado. São os vinhos industriais.

"Industrializar o vinho, como a alimentação, geralmente engloba adições de produtos químicos de monte e modificações e intervenções diversas, desde o pé da uva até o vinho engarrafado. Que não necessariamente vão fazer mal à saude, ou pelo menos não de imediato. Mas entre a teoria e a prática, existe um monte de coisas: como por exemplo vinhateiros que aplicam produtos químicos e não respeitam as carências, ou então produtores que aplicam defensivos de outras frutas nas uvas, ou aplicam três vezes em vez de uma para garantir a produção", explica Lis.

Lista com parte dos insumos autorizados para produção de vinho: nenhum deles precisa vir descrito no rótulo

Vamos para um dado que, pelo menos pra mim, foi bem chocante: mundialmente, é permitido o uso de mais de 200 aditivos enológicos na produção do vinho. Enquanto isso, apenas um deles precisa vir especificado no rótulo (o conservante sulfito). Ou seja: não fazemos A MENOR IDEIA do que estamos tomando. Se eles são todos tão seguros e testados, porque não tornar lei descrever na lista de ingredientes TUDO o que existe dentro daquela garrafa?

Como conta Lis:

"Condições artificiais são criadas para a produção. Leveduras naturais são exterminadas para que sejam utilizadas leveduras selecionadas em laboratório, para que o vinho tenha uma linha de aroma ou outra. Processos químicos são feitos para os vinhos adquirirem mais cor ou mais volume de boca. Agrotóxicos são utilizados nos vinhedos, eliminando pestes, pragas… e qualquer tipo de vida. E conservantes são adicionados em várias partes do processo.

Bordeuax, a mais importante região vinícola na França, é também o área que mais consome agrotóxicos no país

Lembrando que existem leveduras selecionadas para cada tipo de vinho, dependendo do que você pretende em termos de estilo com sua garrafa. Por exemplo "Zymaflore Delta: Levedura de revelação de aromas varietais responsáveis pelas notas de pomelo, maracujá e manga. Baixa capacidade de revelação de 4MMP (brotos de tomate). Adaptada perfeitamente para a elaboração de vinhos brancos varietais como Chardonnay, Sauvignon Blanc, Semillon, Gewurtztraminer, etc.) Alta tolerância alcoólica (15% vol).

A grande desvantagem, além da ingestão altíssima de conservantes e resquícios de pesticidas e agrotóxicos (que são venenos, não se iludam), é a falta de autenticidade. Existem vinícolas que você mal percebe se uma garrafa é elaborada com uma uva e a outra, com outra uva. Os aromas são todos tão parecidos entre eles, que a grande maioria das pessoas acaba achando que só existem aqueles. Mais triste ainda: grande parte dos consumidores aprende a beber e a degustar com vinhos standarizados. Ou seja, vinhos uns iguais aos outros, produtos puramente tecnológicos".

Para lutar contra essa 'coca-colização' do vinho, o movimento dos Vinhos Naturais cresce a cada ano, em todas as regiões produtoras.

Vinhos naturais são aqueles que partem do básico: produzir uvas saudáveis em solo saudável, respeitando o ambiente e a biodiversidade. Para isso, não usam defensivos sintéticos e, em sua maioria, vinificam sem uso de leveduras selecionadas, levando para a garrafa os microorganismos da região, o que é parte importantíssima do tal 'terroir'. A ideia é que o vinho tenha, em todo o processo, a menor interferência humana possível.

A grosso modo – porque o assunto é loooongo e cheio de nuances -, os vinhos denominados naturais englobam os orgânicos e os biodinâmicos.

Esquema, em francês, que mostra os aditivos permitidos nos vinhos convencionais, orgânicos e biodinâmicos

  • Vinhos orgânicos

O tratamentos e fertilizantes não podem ser 'químicos', mas sim orgânicos, com compostos derivados de insumos naturais.  Alguns órgãos certificadores de vinhos orgânicos: Ecocert, Qualité France, ULSAE, Agrocert, Certipaq e ACLAVE.

"Muitos acabam usando o selo de orgânico mais como marketing do que como filosofia de vida. Mas no final das contas, obviamente é  vinho de agricultura biológica é mais saudável do que um de agricultura convencional", diz Lis. "A agricultura biológica é um sistema de produção de base ecológica, que recorre ao uso de boas práticas agrícolas com vista à manutenção e melhoria da fertilidade do solo, ao equilíbrio e à diversidade do ecossistema, promovendo a qualidade ambiental, o bem-estar animal e a saúde humana", finaliza.

  • Vinhos biodinâmicos

Lis explica que o "o biodinamismo baseia-se nos conceitos da antroposofia, que leva em conta influência dos ciclos lunares na fertilidade do solo, harmonia das espécies animais e vegetais, preservação e/ou recuperação da vida do solo, entre outros. A aplicação dessa filosofia é bastante rígida. Ou seja, você não consegue ser meio biodinâmico.  Os vinhos biodinâmicos prezam pela mínima intervenção, tratamentos não químicos (mas sim preparados biodinâmicos), leveduras selvagens em vez das leveduras selecionadas. O básico da questão é o seguinte: o vinho, para ser equilibrado e saudável, precisa vir de uma planta idem. E para uma planta, ou qualquer ser vivo, estar em perfeito equilíbrio, ele precisa estar integrado da maneira mais natural possível no sistema onde vive".

Acreditar no marketing das grandes marcas de vinho é como acreditar na publicidade de salsicha: um tremendo erro. Só que ao contrário da salsicha, que tem seus ingredientes estampados na embalagem para todo mundo ler, o vinho ainda é envolto em grande mistério. Para mim, esse mistério chama mesmo é 'engana-trouxa'.

Sobre a autora

Ailin Aleixo é jornalista, e criadora do mais influente site de gastronomia e turismo gastronômico do país (Gastrolândia) e do canal de jornalismo gastronômico no YouTube, #ptdk. Ocupou o cargo de editora-executiva das revistas VIP, Viagem e Turismo, Playboy e Alfa. Desenvolveu o projeto editorial do roteiro de gastronomia da revista Época São Paulo (2007). Apresentou boletim diário sobre gastronomia nas rádios CBN (2008) e AlphaFM (entre 2015 e 2016). É curadora do FOOD FORUM, o maior fórum sobre comida do Brasil, e palestrante.

Sobre o blog

Foodie-se não é um blog de tendências gastronômicas.Nem de crítica de restaurantes.Nem de novidades, nem de prêmios.Foodie-se é um blog sobre comida e toda sua cadeia: campo, fábrica, pequenos produtores, grandes produtores, bares, restaurantes, animais, plantas, orgânicos, convencionais, chefs de cozinha...

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