Comida não é só comida
Tenho cada vez menos paciência para lugares da moda, 'hypados'.
Para prêmios e estrelas.
Para panelinhas, fofocas, fingimento.
Para 'influencers' que enlouquecem em sua pseudo importância.
Para cozinheiros de egos inflados.
Comida não tem nada – NADA – a ver com tudo isso.
A gastronomia não deveria ter NADA a ver com tudo isso: é muito tempo e energia gastos com o que não importa.
Tenho cada vez mais apreço por gente que foca no macro.
Que valoriza e compreende a cadeia de produção.
Que entende a responsabilidade sócio-ambiental que existe por detrás de cada refeição servida.
COMIDA NÃO É "SÓ" COMIDA.
Comida é o que nos faz ser quem somos e faz o planeta ser o que é.
Comida é o assunto mais importante do mundo – e passou da hora de falarmos sobre ele sem bobagens e com urgência. Passou da hora de entendermos que nossas escolhas cotidianas sobre o que colocamos em nossos pratos tem gigantescas consequências em cadeia.
Passou da hora de encararmos que não há nada no cenário global atual que acarrete tão variados e imensos impactos ambientais quanto o crescente consumo de carne.
É sabido o papel que a queima de combustíveis fósseis e o sistema de transporte tem no aumento da emissão de gases do efeito estufa. Discute-se cada vez mais o uso indiscriminado de agrotóxicos e pesticidas e seus efeitos no solo, água e na saúde humana. Esses são temas intrinsecamente polêmicos, decerto, mas impossíveis de serem evitados. Apontar a ligação inequívoca da cadeia da produção de carne com as maiores mazelas ambientais da atualidade, porém, ainda é tabu. Ainda é visto por alguns exagero ou delírio: "Ah, pode parar de besteira porque o homem sempre comeu carne", é o discurso mais frequente. Sim, sempre comeu carne em quantidades infinitamente menores do que consome hoje. Éramos coletores-caçadores e passávamos o dia obtendo nossas calorias de raízes, frutas, verduras, tubérculos – quando dávamos sorte, matávamos um animal (se ele não nos matasse antes). No período paleolítico não havia supermercado com filé de bisão congelado… Carne era algo raro. Hoje, é onipresente.
Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), em 2015, abatemos cerca de 70 bilhões de animais terrestres e mais de 2 trilhões de animais aquáticos para consumo humano. Para alimentar estes animais, são usadas aproximadamente dez vezes mais calorias do que as contidas em sua carne. Ou seja: a conta não fecha.
No Brasil, somos 208 milhões de habitantes e temos 218 milhões de cabeças de gado: tem mais vaca que gente no nosso país.
No planeta, o número de bovinos é de quase UM BILHÃO.
Um terço dos 3 bilhões de hectares de terras produtivas da Terra são utilizadas para plantação de grãos destinados a alimentar animais; 30% das áreas do globo livres de gelo são usadas como pastagem.
O setor agropecuário é responsável por cerca 80% do consumo global de água (um terço disso se destina a irrigação dos cultivos para ração) e raros são os produtores do setor que fazem a gestão de resíduos – então os efluentes líquidos provenientes dos abatedouros, com forte carga de matéria orgânica (sangue, gordura, vísceras e restos de carcaças), infiltram-se no solo, poluem lençóis freáticos, aquíferos e os cursos de água, desembocando em rios e, por consequência, nos mares, aonde criam zonas mortas sem oxigênio. Para se ter uma idéia do volume, no estado de Santa Catarina, a emissão de dejetos e efluentes não tratados da criação de mais de 8 milhões de suínos chega a mais de 75 milhões de litros de por dia.
Outro impacto profundo do nosso apetite insaciável por carne é a devastação de nossos biomas, seja para colocar gado, seja para plantar comida para ele. A abertura de novas pastagens ou áreas de monocultura de grãos estão avançando, grandemente, nas florestas tropicais, especialmente na Amazônia. "A pecuária responde por 65% dos desmatamentos na Amazônia", diz o climatologista Carlos Afonso Nobre, que estuda há décadas o impacto das mudanças climáticas na região. "Este setor provoca um paradoxo impossível de resolver: se a produtividade da área é otimizada e a pecuária se torna mais rentável, traz mais capital e termina por aumentar o desmatamento. Se o manejo é primitivo, como é desde a implementação da pecuária na Amazônia, as pastagens aguentam, no máximo, 5 anos e depois são abandonadas", explica.
Um novo documentário explica didaticamente esse cenário de devastação: Sob a Pata do Boi, realizado por Marcio Isensee, retrata a realidade que muita gente continua negando e/ou ignorando. Traz em imagens, som e dados o que não queremos encarar: não dá mais para comer tanta carne. É insustentável.
Os fatos estão aí, escancarados. Não é questão acreditar ou não: a realidade não precisa de nossa aquiescência. Como já dizia Arthur Schopenhauer: "Todas as verdades passam por três estágios. Primeiro, são ridicularizadas. Segundo, sofrem violenta oposição. Terceiro, são aceitas como sendo evidentes."
Comida não é, mesmo, 'só' comida.
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