Um salve para a mandioca! Ela merece - e muito.
Ailin Aleixo
27/09/2018 10h00
Há alguns anos eu troquei, nos meus cafés da manhã, os flocos de milhos por farinha de tapioca, ao mesmo tempo macia e crocante.
Me apaixonei pelo sabor do molho de tucupi preto e abandonei, de vez, o shoyu-cheio-de-sódio: o fermentado amazônico é muito mais complexo e interessante.
Cuscuz, em casa, só de Farinha Uarini: aposentei a sêmola.
Hidrato polvilho de boa qualidade e faço tapiocas deliciosas: muitas, coloridas.
Sabe o que as coisas acima tem em comum?
A mandioca.
Um dos alimentos mais sensacionais do planeta (na minha opinião, O MAIS SENSACIONAL) – e nativo do Brasil! -, a mandioca é uma ilustre desconhecida dos brasileiros, mesmo estando em nossas mesas das mais variadas formas. Cotidianamente. Com ela se prepara bijajica, bijus de goma e mandioca, dadinho de tapioca, sagu, pão de queijo, tacacá, biscoito de polvilho, farofa, bolos, cuscuz doce, maniçoba, pato no tucupi, bobó, farinha d'água…
Além de versátil, é generosa: dela, nada se joga fora. É 100% aproveitável e pode ser consumida da folha à raiz. Produz o ano todo. Suas mais de 4 mil variedades oferecem diferenças de cor, textura, sabor e usos. A mandioca é rainha!
Casa de farinha em Belém: você sabe o que é farinha d'água
A maior diferenciação entre as variedades se refere a quantidade de ácido cianídrico. É chamada de mandioca mansa, se tiver pouco; de mandioca brava, se a concentração for alta. O ácido cianídrico, presente tanto nas folhas quanto nas raízes da mandioca, é venenoso, provocando intoxicação em humanos e animais. Para ser consumida, qualquer parte mandioca brava deve ser triturada e 'descansar' ao ar livre, o que elimina o volátil ácido cianídrico. Então, torna-se perfeitamente segura.
Maniçoba, prato típico do Pará, é preparado com as folhas das mandioca (maniva) cozidas com carnes e temperos
Sudeste, Sul, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil plantam majoritariamente as variedades mansas (também conhecidas como aipim e macaxeira). No Norte, predomina a mandioca brava – e é dela que se origina a grande maioria dos subprodutos gastronômicos, como farinha d'água e tucupi. Ah, a mandioca ainda pode ser branca e amarela, boa pra cozinhar ou fritar, ter mais ou menos amido….
Bolo de mandioca: uma das delícias da doçaria tradicional brasileira
Abaixo está uma pequena lista de algumas das possibilidades de uso dessa raiz-tuberosa-maravilha. O que você conhece sobre ela?
FARINHA D'ÁGUA
Ir a Belém e não encher a cara de farinha – de vários tipos de farinha – é pecado dos graves
Depois de descascada, ralada, prensada (para tirar a água) e seca, a mandioca- tanto a brava quanto a mansa – se torna farinha.
Se a raiz for deixada de molho em água por alguns dias, então descascada, ralada, prensada e seca, se torna farinha d'agua ou massa puba. A grande diferença é que a fermentação (pubagem) resulta em sabores mais complexos e ácidos. Geralmente é preparada com as variedades bravas; amplamente consumida no Norte do país.
Cada uma dessas farinhas tem sabor único, resultado da variedade de mandioca utilizada, da fermentação ou não-fermentação, da granulometria da peneira, do processo de secagem, de passar ou não por torra, entre outros fatores
POLVILHO/GOMA/FÉCULA
Manipueira – caldo da mandioca ralada e prensada – separando-se do polvilho/goma
O líquido resultante da prensagem da mandioca é chamado de manipueira. É dele que se originam dois dos subprodutos mais conhecidos e utilizados na gastronomia, especialmente a brasileira: o polvilho (ou goma/fécula/amido) e o tucupi (apenas se a mandioca usada for a brava e amarela).
Após a extração, existe a decantação da fécula/goma/polvilho que, depois de seca, torna-se o polvilho doce, com o qual prepara-se a famosa tapioca. Se o polvilho for deixado nesta mistura por um determinado período de tempo, começa a fermentar e, depois de seco, vem a ser o polvilho azedo.
Se a mandioca utilizada for a brava e amarela, a manipueira está no caminho para virar tucupi (leia abaixo).
TUCUPI
Tucupi é o líquido proveniente da prensagem da mandioca brava amarela, depois de separado da goma/polvilho, fermentado (o que o livra do ácido cianídrico e desenvolve sua acidez característica), misturado a alho, alfavaca, sal e chicória-do-Pará e cozido por horas. O tucupi preto – denso, escuro e com sabor parecido ao do shoyu – é a redução extrema, através de cozimento, do tucupi.
Quando for comprar tucupi, atente-se para um detalhe importante: se o líquido apresentar cor amarela-intensa, é certeza que levou tartrazina, corante tóxico (alguns produtores também adicionam açúcar e glutamato monossódico). O tucupi de qualidade tem coloração amena e fundo sedimentado.
MANIVA
Maniva: venenosas se consumidas sem devido preparo (cozinhas por, no mínimo, 48 horas), as folhas moídas da mandioca são a base de um prato típico do Pará, a maniçoba
As folhas da mandioca, nas quais se concentra a maior parte do ácido cianídrico, não tem tantos usos culinários conhecidos. Contudo, as da mandioca brava são parte essencial de uma especialidade paraense, a maniçoba. A maniçoba é um cozido de maniva (que fica no fogo por dias, a fim de neutralizar o veneno) com todos os pertences comuns a uma feijoada: não à toa é conhecida como 'feijoada sem feijão'.
Outros usos da mandioca
- Raiz fresca, silagem da raiz, farinha, farinha de maniva: alimentação de suínos.
- Raspa residual e farelo de farinha de mesa de mandioca e farinha de maniva: alimentação de aves.
- Farinha de raspa de mandioca como substituta da farinha de trigo na colagem de lâminas de compensados.
- O amido extraído da planta é essencial nas fábricas de tecelagem. Com a substância se faz uma goma que dá resistência aos fios com que se produz tecidos.
- O amido modificado de mandioca surgiu como uma alternativa mais eficiente e barata, em comparação ao amido modificado de milho, usado na fabricação do papel.
- A fécula de mandioca se tornou um elemento chave na substituição de compostos derivados do petróleo.
Sobre a autora
Ailin Aleixo é jornalista, e criadora do mais influente site de gastronomia e turismo gastronômico do país (Gastrolândia) e do canal de jornalismo gastronômico no YouTube, #ptdk. Ocupou o cargo de editora-executiva das revistas VIP, Viagem e Turismo, Playboy e Alfa. Desenvolveu o projeto editorial do roteiro de gastronomia da revista Época São Paulo (2007). Apresentou boletim diário sobre gastronomia nas rádios CBN (2008) e AlphaFM (entre 2015 e 2016). É curadora do FOOD FORUM, o maior fórum sobre comida do Brasil, e palestrante.
Sobre o blog
Foodie-se não é um blog de tendências gastronômicas.Nem de crítica de restaurantes.Nem de novidades, nem de prêmios.Foodie-se é um blog sobre comida e toda sua cadeia: campo, fábrica, pequenos produtores, grandes produtores, bares, restaurantes, animais, plantas, orgânicos, convencionais, chefs de cozinha...